- Introdução
Desde 2008 a Organização Mundial da Saúde estabeleceu o dia 02 de abril como marco para o dia mundial da conscientização sobre o autismo, como forma de disseminar conhecimentos acerca do tema, tão presente na sociedade, mas com forte escassez de informações e incidência de preconceitos das mais diversas ordens.
Eis o propósito do presente texto: fomentar o acesso a informações importantes sobre o autismo e facilitar que mais pessoas portadoras da deficiência em questão possam buscar o auxílio médico-terapêutico e social indicado para seu caso.
O autismo é condição neurológica que dificulta o desenvolvimento da comunicação e interação social da pessoa, podendo ser externalizado por diversos meios clinicamente aferíveis, razão pela qual denomina-se tecnicamente Transtorno do Espectro Autista.
Assim, manifestação da deficiência é bastante individualizada, ensejando níveis de suporte diferentes para cada caso, uma vez que integram o espectro tanto pessoas com vida independente (que às vezes sequer desconfiam serem autistas justamente pela falta de informações para busca de diagnóstico) quanto pessoas que demandem maior intensidade de apoio para a prática de atos cotidianos, podendo inclusive ter outras comorbidades ou condições associadas (deficiência intelectual, epilepsia, dentre outros).
Desde logo, deve-se afastar uma ideia do senso comum: nem todo autista é tem QI acima da média. Na verdade, a menor parte dos autistas com diagnóstico comungam desta características. Ademais, esta pequena parcela, a despeito da facilidade cognitiva, costuma ter dificuldades sociais, o que demonstra a necessidade de intervenção terapêutica para reduzir sofrimentos decorrentes de tais dificuldades.
De outro lado, o preconceito atinente ao tema ainda faz muitas famílias refutarem até mesmo o início das investigações médicas preliminares para a detecção do autismo, repita-se, eminentemente clínica, notadamente nos casos em que o transtorno requer alto nível de suporte para a pessoa por ele acometido. Trata-se de postura que, a pretexto de proteger a pessoa autista, acaba obstando que tenha oportunidade de desfrutar de vida o mais independente possível, causando sofrimento que muitas vezes a pessoa autista não é capaz de expressar.
- Lei Berenice Piana (lei federal nº 12.764/2012) – legislação correlata estadual
Nesse ponto, parafraseio Berenice Piana, mãe de autista que muito batalhou – e batalha – pelos direitos dos autistas, que conclamou: “Nunca desista de seus filhos”. Não à toa a Lei nº 12.764/2012 – marco legal do autismo no Brasil – é nacionalmente conhecida por “Lei Berenice Piana”.
Por meio desta lei de abrangência nacional, ficou estabelecido o direito ao diagnóstico precoce, a tratamento terapêutico multidisciplinar e dispensação de medicamentos pelo SUS, acesso à educação, à proteção social, ao trabalho e a serviços que proporcionem a igualdade de oportunidades.
Além disso, essa mesma norma estendeu às pessoas com TEA o mesmo tratamento jurídico já dirigido às demais pessoas com deficiência (que tem por base a Lei n° 13.146/2015 e
a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Lei 6.949/2000).
Com base nessa lei é que advogados e defensores públicos buscam o tratamento multidisciplinar para autistas pela via pública, isto é, buscam obrigar Municípios e Estados a cumprirem seu dever estatuído de disponibilização de profissionais capacitados para o atendimento individualizado e na intensidade descrita pelo médico assistente.
Também é esta lei que dá fundamento para a inclusão de alunos autistas em escolas regulares. Isso porque não pode o gestor escolar – seja de escola pública ou privada – recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista, sob pena de aplicação de multa administrativa sobre a escola e a pessoa do gestor, além de poder responder civilmente pelos danos morais causados e criminalmente pela prática de crime de discriminação.
Assim, importante alertar aos pais e aos profissionais assistentes do autista que, em ocorrendo tal recusa, deve-se procurar a Secretaria de Educação (Municipal ou Estadual, a depender da escola em que o fato ocorreu), o Procon (se for escola particular), o Ministério Público e a Defensoria Pública para que as providências acima relatadas possam ser tomadas.
Nessa mesma situação enquadra-se o acompanhante escolar, pessoa designada para mediar as atividades escolares desenvolvidas por aluno autista inserido no ensino regular, quando houver relatórios e laudos que justifiquem tal modalidade de intervenção. Veja que o mediador vai muito além do simples cuidador, mas atuará inclusive das atividades de ensino propriamente dita, maximizando as chances de aprendizado por parte do aluno autista.
No âmbito do Estado de Mato Grosso, a Lei nº 10.791/2018 prevê a obrigatoriedade de atendimento multisdiciplinar da pessoa autista pela rede pública de saúde e assistência social. Há ainda expressa proibição de cobrança de taxa extra para matrícula de pessoas com autismo e outras enfermidades por parte das escolas privadas situadas em Mato Grosso (Lei Nº 10.170/2014).
Cumpre ressaltar também a chamada Lei Romeo Mion, que inseriu dispositivos no que chamo de “lei geral do autismo” garantir atenção integral, pronto atendimento e prioridade no atendimento e no acesso aos serviços públicos e privados, em especial nas áreas de saúde, educação e assistência social mediante a simples apresentação de carteira expedida por órgãos públicos que ateste o diagnóstico da pessoa autista.
Tal carteira, muito mais fácil de se portar no dia a dia, afasta a necessidade de a pessoa autista estar de posse de laudo médico e relatórios de outros profissionais para demonstrar a enfermidade.
Outro ponto importante que decorreria da aplicação desta norma seria a de facilitar o censo de pessoas com autismo no Brasil; isto é, se referida norma tivesse devidamente regulada e colocada em prática pelo governo federal, este poderia ter dados bastante aproximados da realidade de quantas pessoas autistas existem no Brasil, bem como outros dados eventualmente solicitados quando do cadastramento para permitir a execução de políticas públicas eficazes para esse público.
Infelizmente, contudo, até hoje, pouco mais de um ano após a edição da Lei, ainda não houve regulamentação da norma.
Todavia, vários Estados e Municípios, mais engajados na temática, estão criando norma similar, de validade regional, para facilitar a vida dos autistas. No âmbito do Estado de Mato Grosso, vigora a Lei nº 10.997/2019, tendo a Secretaria de Estado de Assistência Social dispõe de link em seu site para impressão do requerimento para a emissão de tal carteira.
- Tratamento multidisciplinar e planos de saúde
Apesar de todo este arcabouço legal, bem como da predominância de julgamentos favoráveis aos consumidores de planos de saúde que buscam pela via judicial o atendimento a laudos médicos para cobertura de terapias multiprofissionais – psicoterapia intensiva ABA, fonoaudiologia ABA, terapia ocupacional com integração sensorial, fisioterapia ABA ou Bobath, equoterapia, dentre outros necessários a depender de cada caso – a maioria das operadoras de plano de saúde recusam o atendimento pleno, ofertando apenas a forma “convencional” de baixíssima intensidade e às vezes indicando profissionais não habilitados ou capacitados para o tratamento médico prescrito.
Diante de tal postura, ao consumidor autista, munido de documentação comprobatória de sua condição, da ineficácia do tratamento comum, cabe buscar as vias judiciais para fazer valer cláusula contratual de cobertura do tratamento para a enfermidade que lhe acomete – se assim houver previsão.
Os magistrados de diversos estados e instâncias têm entendimento majoritário no sentido de que eventual relação de procedimentos da ANS mencionados em contratos de planos de saúde não representa impedimento para a cobertura de outros tratamentos ali não expressamente listados, bem como que a operadora de plano de saúde não pode limitar a quantidade de terapias a serem cobertas, a depender do caso concreto.
Portanto, em casos tais, importante que seja buscada orientação profissional de advogado ou defensor público para fazer valer o direito do consumidor autista.
- Outros direitos
Para além do que foi apresentado, as pessoas autistas podem ter direito a diversos outros benefícios, a depender do preenchimento de requisitos de cada um deles:
- BPC – Benefício assistencial de um salário mínimo mensal para pessoa autista que integre família de baixíssima renda (menor que ¼ de salário mínimo por pessoa da família), junto ao INSS; Negativa indevida enseja busca judicial, inclusive em relação aos valores que deixaram de ser pagos entre o pedido administrativo e a decisão judicial.
- Auxílio-reabilitação psicossocial: benefício do Ministério da Saúde para assistência, acompanhamento e integração social, fora de unidade hospitalar, de pacientes acometidos de transtornos mentais, egressos de internação em hospitais ou unidades psiquiátricas;
- Desconto de IPI e ICMS na aquisição de veículos – Secretarias de Fazenda dos Estados elencam documentos e requerimento padrão para solicitar;
- Desconto no valor da passagem aérea do acompanhante da pessoa autista – Sites das companhias aéreas têm requerimento padrão e lista de documentos exigidos.
- Passe livre em transporte rodoviário interestadual e intermunicipal; Desnecessidade de uso de máscara facial na pandemia – Lei 13.979/2020 – dificuldade sensorial devidamente comprovada enseja desnecessidade.
- Conclusão
Ao final, reforço como qualquer pessoa, como regra o autista é plenamente capaz, podendo praticar os atos da vida civil como qualquer outra, não havendo necessidade de curatela ou interdição no caso dos maiores de 18 (dezoito) anos, principalmente nos casos em que há precoce detecção e tratamento do transtorno, hipótese em que a vida adulta poderá ser tão ou mais independente que a sua, caro leitor.
Em tempos de pandemia, o exercício da empatia nos exige colocar-se no lugar do outro antes de agir ou falar. Essa mesma empatia reclama de nós abertura para compreender a pessoa autista, que, assim como você, tem sentimentos, desejos e dificuldades, apenas requer mais oportunidades para poder expressá-los.
Aos pais, ao primeiro sinal de atraso nos marcos de desenvolvimento na primeira infância, quando notar comportamento um pouco diferente dos demais da mesma idade, investiguem, até mesmo para descartar o autismo. Dêem aos seus filhos a chance de ter um caminho a seguir (tratamento médico baseado em evidência científica), e, acima de tudo, apoiem-no na batalha do tratamento e para extinguir o preconceito contra pessoas com deficiência, inclusive autistas. Enfim, nunca desistam de seus filhos.
DANIEL GOMES SOARES DE SOUSA
Procurador do Estado
Advogado atuante na causa do autismo
Especializando em Análise Comportamental Aplicada (ABA)